A Fotografia de “Lawrence da Arábia”

Como David Lean e Freddie Youg criaram uma das cinematografias mais icônicas da historia do cinema.

  • Reino Unido
  • 1962
  • Colorido

São poucos os filmes que transmitem a sensação de grandeza como “Lawrence da Arábia”. Com uma qualidade técnica incontestável, é considerado por muitos um dos melhores filmes de todos os tempos; a seleção dos 100 melhores filmes pelos membros da American Cinematographer coloca o filme, rodado por Freddie Young e David Lean, em primeiro lugar da lista.

Filmado em wide screen, o longa é notável por sua impressionante magnificação do cenário desértico, que além de belo por si só, tem um importante papel na história, uma representação metafórica para o personagem T.E. Lawrence. Segundo o personagem o deserto “é limpo”, essa afirmação esconde o outro lado do deserto que o filme tanto evidência, o deserto é perigoso, assim como Lawrence – e seu deserto interior.

A fotografia de Young é primorosa, mas a beleza final do longa não sua única conquista. Grande parte de “Lawrence da Arábia” foi gravada em locação na Jordânia, em pleno deserto, as dificuldades de se filmar nesta locação se provaram desafiadoras.

Freddie Young afirma, em “The Making Of Lawrence of Arabia” (1988), que nos primeiros testes em locação percebeu que na imagem gravada haviam manchas brancas que não pareciam desaparecer. Enfim notou que era um leve derretimento do filme, o problema foi resolvido colocando isolação de calor para a câmera – capas, guarda-sóis e tendas – e armazenando os filmes em um caminhão refrigerador junto com os alimentos da equipe.

A maioria das cenas foram filmadas de manhã ou ao pôr do sol, a luz forte do meio dia afetava o filme da câmera e deixava as cores exageradamente pálidas e sem contraste.

O longa demorou mais de um ano para ser filmado, David Lean tinha o hábito de sair para a locação com toda a equipe para planejamento e ensaio, filmando a cena de fato no dia seguinte. Mesmo assim a equipe não tinha muito tempo: as cenas deveriam, em sua maioria, ser filmadas uma única vez, pois o preparo para filmar uma segunda tentativa levava muito tempo, visto que as pegadas deixadas na areia deveriam ser apagadas:

“Coisas pequenas como os camelos em um wide shot deixando pegadas na areia virgem (…) me provocaram a querer saber mais sobre filmes e como eram feitos.”

(Steven Spielberg, entrevista para American Film Institute, 27 de dezembro de 2012).

O perfeccionismo de Lean provocava a equipe a tentar planos até então impossíveis, o diretor queria trazer um senso maior de realismo no longa, para que a audiência se sentisse no deserto. Freddie Youg entregou exatamente isso:

“A única imagem falsa em ‘Lawrence da Arábia’ é uma pintura do sol, que Lean queria fotografar naturalmente, mas provou ser tecnicamente impossível. Mesmo quando as figuras em seus camelos são pontos no horizonte, na verdade são Omar Sharif e Peter O’Toole. ‘Não era apenas sadismo’, lembrou Sharif. ‘Acho que ele queria que sentíssemos o que era estar lá fora no deserto.’”

(Andrew Collins, artigo para o The Guardian, 4 de maio de 2008)

O deserto não foi tratado somente como uma locação ou cenário, o deserto também é um personagem e é nele que a fotografia se baseia, as cores são pálidas e pastéis, o sol e a iluminação é pesada e queima, isso é passado não somente na representação dos atores – com olhos cerrados e pele vermelha – mas também no cenário que vibra e arde na tela.

Para muitos, a cena mais memorável de “Lawrence da Arábia” é a primeira aparição de Sherif Ali, interpretado brilhantemente por Omar Sharif, conhecida como a “Cena da Miragem”.

A “Cena da Miragem”

A cena se inicia com um plano contra-plongée de Lawrence e seu guia, que pegam água de um poço. Esse plano se contrasta com o resto do filme, principalmente na paleta de cores e na iluminação, este contraste do escuro fundo do poço com a clara superfície alertam o expectador; também dão o senso de que o perigo se aproxima, já que o plano remete a um cano de arma que aponta para os personagens.

Ali se aproxima ao fundo, surgindo ao meio de uma nuvem de areia (criada pela produção por carros correndo em círculos). A miragem foi um efeito alcançado pela equipe com extensas regulagens de lente e foco. Uma miragem é de fato uma ilusão ótica nos olhos, e acreditava-se não ser possível de ser capturada em filme; David Lean e Freddie Young provaram o contrário:

“Eu enxergo esse filme como um grande milagre. (…) Até mesmo as ilusões não foram feitas com CGI. (…) A ‘Cena da Miragem’, quando Omar Sharif está cavalgando, é uma ilusão que nos dias de hoje seria criada com efeitos óticos, mas naquela época aquilo foi absolutamente o que eles rodaram no filme com uma lente telefoto de 800 milímetros.”

(Steven Spielberg, entrevista para American Film Institute, 27 de dezembro de 2012).

A cena da miragem, efetivamente, foi gravada com uma lente 450 milímetros, mas é sabido que David Lean levou uma 800 milímetros para a gravação e deve ter a usado nos planos em que Omar Sharif estava mais próximo.

Tanto a nuvem de areia quanto a miragem dão uma ideia de desconhecido, o personagem coberto por túnica preta também causa essa ideia. A miragem por si só traz a dúvida do que é real e o que é ilusão. A tensão e o medo nessa cena são atingidos puramente pela imagem e pela montagem, praticamente não há som ou trilha sonora, causando, além de desconforto, extrema tensão. A cena da miragem pode ser resumida por uma frase: “medo do desconhecido”; desconhecido que se aproxima cada vez mais dos personagens, da câmera e, por consequência, do expectador.

No frame acima, Lawrence, seu guia e Sherif Ali aparecem em um único plano, pode ser traçado um triângulo entre os personagens, o que ajuda o expectador focar no personagem de Sharif ao oposto dos dois em primeiro plano. Em quase todo o decorrer desta cena o enquadramento é centralizado no objeto de destaque (Sherif Ali), a câmera raramente se move, mas simplesmente se aproxima lentamente, assim como o personagem; isso tudo é um trabalho para manter o foco e a tensão.

Apesar de ir contra a opinião de Freddie Young, o diretor de arte (John Box) decidiu que a cena ficaria mais efetiva com um estreito caminho traçado na areia em direção a Sharif, para chamar a atenção do expectador para ele, Box também adicionou pequenas pedras pretas no cão, para servir de moldura e trazer contraste a imagem, que considerava pálida demais.

O resultado de todo esse trabalho é uma das mais reconhecíveis cenas da história do cinema. A “Cena da Miragem” é considerada por muitos dos entusiastas como uma das melhores introduções de personagem (Sherif Ali), e de fato ela estabelece o parâmetro do personagem de Omar Sharif para o resto do longa:

“Nenhuma outra cena demonstra tão claramente que David Lean é um diretor formalista quanto a cena em que Sherif Ali aparece pela primeira vez: O posicionamento de figuras, como todo elemento visual dentro do frame, é cautelosamente planejado, como em uma detalhada pintura de Velázquez. E ainda, no coração dessa cena, existe um palpitar de outro tipo de imagem, uma de ambiguidade e mistério, uma que fala com a câmera e com a audiência.”

(Steven C. Caton, Lawrence of Arabia: A Film’s Anthropology, Los Angeles -1999)

“Lawrence da Arábia” é uma obra prima do cinema, a forma em que transmite suas mensagens pela fotografia, tanto quanto em outras formas de audiovisual, vai ficar para sempre na história do cinema. Isso não seria possível sem a cirúrgica direção de fotografia, vencedora do Oscar, de Freddie Young e da magistral direção de David Lean.

  • Steven C. Caton, Lawrence of Arabia: A Film’s Anthropology, Los Angeles, 1999
  • Steven Spielberg, entrevista para American Film Institute: https://www.youtube.com/watch?v=ayJLeVDOCZ0
  • Andrew Collins, artigo para o The Guardian: https://www.theguardian.com/film/2008/may/04/features
  • American Cinematographer, A Century of Inspiration: https://ascmag.com/articles/a-century-of-inspiration
  • The Making Of Lawrence of Arabia (1988), Blue-Ray Lawrence da Arábia, Edição Clássicos, 2015
  • Cinema Tyler, How David Lean Created Ali’s Mesmerizing Entrance: https://www.youtube.com/watch?v=49qNHfYq6XE
  • Frames de Lawrence of Arabia: http://beautifulfilmframes.blogspot.com/2014/03/lawrence-of-arabia-hd-stills.html

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