As Luzes de “Casablanca”

Baseado em uma peça de teatro jamais encenada, “Casablanca” de Michel Curtiz é um dos clássicos mais atemporais do cinema americano, um exemplo perfeito de como a era de ouro de Hollywood mesclava a arte e o entretenimento para entregar uma das épocas mais memoráveis da produção de filmes. Lançado em 1942 nos EUA pós Pearl Harbor, o longa se beneficia do momento histórico incerto para tratar a dualidade que a sociedade americana sentia. Com o posicionamento do país na segunda guerra, certas coisas mudariam para a sociedade, sonhos que não seriam realizados e amores para sempre perdidos. A atrocidade do mundo na época não era o palco para romances com finais felizes; assim é “Casablanca”.

Rodado por Arthur Edeson (Sem Novidade no Front, Relíquia Macabra), o longa traz em sua fotografia referências do expressionismo alemão, do film noir e do chiaroscuro renascentista. Especificamente no uso da luz, que incrementa a representação da história e detalha pontos que complementam o desenvolvimento dos personagens.

Edeson e Curtiz optaram por um cenário com fortes contrastes entre o claro e o escuro, isso enfatiza a dualidade da Casablanca, dividida entre franceses, alemães, marroquinos e aqueles que estão de passagem, a espera de um visto para fugir da caótica cidade. Essa dualidade de luz e sombra incrementa o rumo da história e acrescenta profundidade à imagem. Junto com o design de produção e o figurino, os cenários são em sua maioria brancos, assim como o figurino. Rick, Ilsa e Victor estão quase sempre vestidos de branco, é a sombra que traz a complexidade na imagem.

O uso de sombras é destacado, trazendo a natureza expressionista e a dualidade enfatizada.

O film noir está presente na maioria das cenas noturnas, também destacando dualidade, não somente do cenário, mas de personagens. Rick está dividido entre seus ideais (de proteger a nação e ajudar as pessoas) e sua natureza grosseira, que se desenvolveu com as decepções de sua vida (Rick se tornou indelicado e cínico). Outro contraste interessante no personagem é a questão de lei e corrupção, amor e dever. Ilsa por sua vez aparece diversas vezes sob a luz das janelas que formam o padrão de grade de prisão, ela de fato está aprisionada em Casablanca, mas também em seu relacionamento com Victor, que não a permite viver o verdadeiro amor com Rick. O dualismo de Ilsa é o de amor e dever, mas raramente vemos seu rosto dividido entre luz e sombra. A personagem é muitas vezes iluminada por uma luz limpa e suave, demonstrando que no fundo ela tende mais para o lado do amor e está disposta a perder tudo para ficar com Rick.

Os reflexos nos olhos de Ilsa são detalhes propositais que intensificam o carisma da personagem.

O trabalho de Edeson é preciso, em diversos momentos do filme pode se perceber luzes refletirem nos personagens de acordo com o que acontece em cena. Por exemplo: quando Ilsa fala de Victor a luz em seu rosto se intensifica, demonstrando a importância da luta do personagem contra o “Eixo”. No cinema expressionista alemão, os cineastas tendiam a distorcer a realidade para causar um efeito emotivo, é exatamente isso que Edeson faz em “Casablanca”. O diretor de fotografia deixa bem claro pelo uso de luz que o personagem está do lado certo da luta. O filme não tenta ser imparcial quanto os dois lados da guerra, os países do “Eixo” são os vilões. Isso contrasta ainda mais com a imagem de Rick: seus ideais o pedem que ajude Victor (ele sabe que é a coisa certa a fazer), mas seu senso cínico e grosseiro quer prejudicá-lo para se vingar de Ilsa.

O chiaroscuro é outra estratégia de Edeson e Curtiz para a representação das nuances do roteiro e dos personagens. Comum no film noir e em outros trabalhos de Edeson, as fontes de luz são precisas e transmitem muito bem a solidão de Casablanca e a tristeza de sua população, que em desespero clama pelo direito de voltar para suas famílias.

Edeson usa a técnica do chiaroscuro para dar profundidade a imagem.
(1633 Rembrandt “Portrait of the Young Saskia”)

Sem dúvidas, “Casablanca” é um dos melhores filmes de todos os tempos e um dos mais famosos da Hollywood Clássica. A direção de fotografia serviu para dar mais complexidade em um roteiro já muito eficiente. Se trata de um daqueles raros filmes que têm confluência de excelências em diversos setores (direção, atuação, música, etc.), assim criando uma obra prima cinematográfica.

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