As Fabulosas Cores de Amélie Poulain

No cinema, as cores são importantes elementos conceituais, que têm o poder de alterar a forma com que o espectador se conecta com o filme. Mesmo que sutil, uma mudança na coloração de uma cena pode causar reações diversas. Por exemplo: cores frias podem expressar tranquilidade ou tristeza, enquanto cores quentes podem evocar sentimentos de otimismo e energia. No entanto, vale lembrar que uma teoria de psicologia das cores não pode, incontestavelmente, classificá-las em emoções pré-definidas. Emoções são pessoais, assim como a significação das cores. 

Muito lembrado por seu excelente uso de cores, “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain” de Jean-Pierre Jeunet utiliza diversas formas de comunicação visual para transmitir as emoções por linguagem cinematográfica. Como as cores são pessoais, o longa de Jeunet também é: 

“É extraído de minhas experiências, minhas histórias, minha coleção de lembranças. É menos fantástica e mais poética. É realidade, mas com algo diferente, porque eu não gosto do realismo real, para mim isso não é interessante de se fazer.” 

Jean-Pierre Jeunet (Entrevista para Hammer to Nail – 2016) 

Uma imagem sozinha pode significar muitas coisas, mas uma composição cinematográfica pode nortear o espectador a encontrar o significado de uma história. Mesmo em um filme “realista”, o cinema de ficção impõe métodos que manipulam a percepção do público. Se a cor verde sozinha pode ter milhares de interpretações pessoais, em um filme que utiliza da cor como linguagem, a quantidade de interpretações é reduzida, usualmente desviada para o conceito do roteiro. 

Em “Amélie Poulain” o significado da cor verde está muito mais ligado ao senso de harmonização que a protagonista põe mundo do que à uma alusão à natureza. Isso se dá pois o roteiro, a interpretação dos atores, a trilha sonora e todas as outras linguagens que compõem o longa confluem para causar essa sensação. A fotografia indicada ao Oscar de Bruno Delbonnel faz isso com exatidão. 

Três cores são constantes no longa de Jeunet: amarelo, verde e vermelho. Talvez como na coleção de lembranças do diretor, em “Amélie Poulain” essas três cores invadem o cenário e os frames de forma inatural, o que evoca a sensação de desprendimento da realidade. Apesar de quase nada da história ser fantástico, a forma com que Jeunet e Delbonnel compõem a imagem é: 

“Em ‘O Fabuloso Destino de Amélie Poulain’ a composição fotográfica/fílmica apresenta uma estética aguçada e atrativa para o expectador. Atrativa por apresentar cores que se diferem da realidade comum de um indivíduo: o emprego das cores convida a explorar um universo colorido e cheio de detalhes que passam despercebidos e que se distanciam de uma rotina cansativa de uma pessoa comum.” 

Leticia Dovhy e Carlos Alberto de Souza (Amelie Poulain: Uma Análise da Construção Cinematográfica – 2018) 

Um exemplo do excêntrico/inusitado no filme é o uso da simetria, que causa o senso de delineamento e tradição. Principalmente nas cenas da infância de Amélie, a vida rotineira de seus pais está em contraste com a personalidade inventiva da protagonista. Isso também realça o fato de que criação de Amélie foi centrada quase que totalmente em seus genitores. Aliado a isso, a simetria traz o inusitado dos gostos e desgostos dos personagens, e a dualidade de seus seres. 

“A mídia resgata de nosso repertório essa ligação dos tons pastéis (amarelados) para representar o antigo. Assim como as cenas da infância de Amélie são retratadas em tons amarelos que remetem ao passado, mas também pode simbolizar a relação desgastante na casa da personagem.” 

Leticia Dovhy e Carlos Alberto de Souza (Amelie Poulain: Uma Análise da Construção Cinematográfica – 2018) 

O amarelo, pautado no antigo e no desgaste, enfatiza a relação de Amelie com seus pais, e a falta de afeto por parte deles. Os tons pastéis usados nas cenas em que a personagem está na presença de seus pais são fracos e desbotados, assim como a vida daquela família. 

O amarelo também é usado intensamente nas cenas externas. Segundo Jeunet, a maioria das cenas foram gravadas ao pôr do sol, para trazer um nostálgico e intenso céu amarelado de Paris. Além do forte senso de nostalgia, o amarelo faz tudo ficar mais brilhante, o que ajuda a transmitir a felicidade de Amélie, que pode ser comparada a felicidade de um raio de sol. A personagem é o exato oposto do sombrio, uma atmosfera tranquila a permeia, retratando sua personalidade gentil. Neste sentido, o amarelo “solar” encaixa perfeitamente na história. 

O que norteia o senso de harmonização que Amélie põe no mundo é a cor verde. Sempre presente com cores mais quentes, o verde pode trazer diferentes sentimentos para cada cena. Quando composta com tons de amarelo, na maioria das vezes, o frame passa a sensação de harmonia, positividade e equilíbrio. Já quando é composta com tons de vermelho, a cena pode evidenciar o contraste entre amor e sexualidade da protagonista; que luta com a dualidade interna de amar as pessoas, sem saber se conectar com elas. 

O vermelho, também muito incisivo, dá o senso de paixão, não somente amorosa, mas também “quente”, representando a força de vontade de Amélie: 

“O tom vermelho também aparece com frequência no apartamento da protagonista, principalmente em seu quarto. O ambiente é trabalhado em tons vermelhos que variam a saturação, de acordo com o que a personagem está sentindo. Em momentos em que a protagonista se sente inquieta ou planeja algo, a saturação é maior, já quando expressa a tranquilidade é menos saturado e combinado com outros tons.” 

Leticia Dovhy e Carlos Alberto de Souza (Amelie Poulain: Uma Análise da Construção Cinematográfica – 2018) 

Outra cor muito presente no filme de Amélie Poulain é o azul. Segundo Bruno Delbonnel, pequenos objetos e luzes azuis foram adicionados ao filme para trazer contraste. 

 “O Fabuloso Destino de Amelie Poulain”, como nas pinturas do brasileiro Juarez Machado e do francês Henri Matisse, se beneficia do uso da cor para a construção de sentidos e emoções. Segundo o próprio Matisse, “Cores e linhas são forças, o segredo da criação está no jogo e no balanço dessas forças”. A composição de Jeunet e Delbonnel é como a pintura do “Homem de Vidro”, que pinta a mesma imagem por anos, cada vez é uma pintura diferente. Nos mesmos cenários as cores e linhas mudam, assim como as emoções. 

Delbonnel tem um trabalho muito característico. No longa é comum o uso de travellers, que enfatiza a dinâmica inusitada. A iluminação é em sua maioria composta de luz difusa, que traz a impressão de sensibilidade e ascensão, também desprendendo da realidade. 

A construção cinematográfica de Amélie Poulain é, em sua essência, uma composição estética e de sentidos. O cinema, e mais especificamente a direção de fotografia, utiliza das cores, dos enquadramentos e da iluminação para promover as ideias marcadas no roteiro, assim criando um trabalho visualmente conciso com as ideias iniciais. É exatamente isso que acontece em “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain”. 

Obras de Henri Matisse e Juarez Machado em comparação com “O Fabuloso Destino de Amelie Poulain”: 

Henri Matisse – O Quarto Vermelho (1908) 

Juarez Machado – Interior com Pintura

O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (2001)

Bibliografia 

http://portalintercom.org.br/anais/sul2018/resumos/R60-1180-1.pdf 

https://docplayer.com.br/72441840-A-interpretacao-das-cores-como-representacao-de-sentimentos-no-filme-1-o-fabuloso-destino-de-amelie-poulain.html

https://joymdebarnier.wordpress.com/2017/10/26/the-house-of-the-rising-sun/

https://www.modernmotionvideo.com/cinema-blog/learning-from-the-masters-amelie

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