Representatividade Trans no Cinema

Hollywood sempre hesitou na inclusão de pessoas transgêneros no cinema. Na verdade, Hollywood nunca se importou com representatividade. A história do cinema estadunidense, desde seu nascimento, assassina violentamente tudo o que não é da cultura europeia cristã.

Vamos começar com o primeiro grande filme da história, “O Nascimento de Uma Nação” (1915) de D.W. Griffith; o primeiro longa metragem a lotar as salas de cinema, um sucesso incomparável, um grande filme que usa técnicas fotográficas inovadoras, montagem marcante e que moldou a produção dos filmes e é uma grande influência fílmica até os dias de hoje. O longa de Griffith é objeto de estudo obrigatório na escola de cinema, mas é um filme declaradamente racista, com atores brancos em blackface ridicularizando personagens negros e os retratando como uma ameaça aos “sagrados valores da família branca”.

Em uma cena em específico, referida como “a perseguição de Gus”, Flora, uma garota branca brinca com esquilos, paralelamente um homem negro (Gus) a observa. O homem então se aproxima da garota e pede para que ela seja a sua mulher, ela nega, então o homem corre atrás dela. Uma perseguição se inicia, o desfecho é Flora cometendo suicídio ao se jogar de um penhasco. Intercaladas entre si, as tomadas com Flora em tela são suaves, seu rosto é iluminado com luzes alvas e difusas; as tomadas com Gus em tela são rápidas e brutas, ele é iluminado com luz dura e contrastante, um filtro de cor vermelha é usado para dar a ideia de perigo.

O filtro de cor vermelha enfatiza a ameaça de perigo do personagem negro.

A montagem da sequencia é claramente maniqueísta, para dar ideia de que o branco é bom e inocente e o negro é mau e perverso. O longa chega a justificar a criação da Ku Klux Klan à partir desta cena; retratando pessoas negras como predadores sexuais que se beneficiavam do fim da lei de anti-miscigenação; e tratando a Ku Klux Klan apenas como um instrumento de defesa das famílias brancas.

Cinema não é apenas puro entretenimento, ele pode ser usado como propaganda para perpetuar qualquer ideia – e quando uma ideia é perpetuada por uma mídia popular é difícil, senão impossível, de ser desconstruída da sociedade sem anos de retratação.

Representação Transgênero na História do Cinema: Revelação (2020)

O documentário “Revelação” (Disclosure, 2020), disponível na Netflix, busca compreender a presença de pessoas transgênero no cinema e na televisão e ressignificá-las perante a sociedade atual. Com o depoimento de pessoas transgênero bem sucedidas no mercado audiovisual, como Lilly Wachowski (Diretora de Matrix) e Laverne Cox (Atriz de Orange is the New Black), são discutidas diferentes formas de representação transgênero na mídia audiovisual, desde o cinema de Griffith até a série “Pose” (Ryan Murphy, 2018).

A presença da carismática Laverne Cox eleva o documentário trazendo o depoimento de uma mulher trans bem sucedida.

A “revelação” é um processo que somente homens e mulheres trans precisam passar, uma pessoa cis (que se identifica com o gênero de nascença) não precisa se assumir ou se revelar cis para as pessoas que ama, é tudo subentendido. A ansiedade da revelação é algo muito prejudicial, no entanto, o medo de como as pessoas irão reagir é muito justificável, a mídia encena resultados desastrosos há anos.

O documentário de Sam Feder aponta a fatídica cena no filme “Traídos pelo Desejo” (Neil Jordan, 1992), em que um homem inicia relações sexuais com uma mulher sem saber que ela é transgênero. O momento da revelação é retratada da pior maneira possível, ao ver as genitais da mulher o homem surta e vomita. O filme não está nos dizendo somente para temer pessoas trans, está nos dizendo para termos nojo dessas pessoas, da mesma forma em que Flora tem nojo de Gus em “O Nascimento de uma Nação”. É o racismo explícito do início do século XX se repetindo na transfobia explícita de hoje. A ideia transmitida em “Traídos pelo Desejo” é de que a “revelação” é algo para ser temido.

Mas não é essa “revelação” que o documentário de Feder quer resolver, e sim mostrar que esses filmes, pertencentes ao imaginário popular, constroem uma visão equivocada, que é imediatamente abraçada por pessoas que não sabem o que é uma pessoa transgênero. Essas pessoas, após anos desse “treinamento” midiático, de que pessoas trans são motivo de aversão e nojo, partem ao mundo deixando um discurso de ódio e transfobia; e culminam em crimes e no massacre da população trans do mundo. O filme de Feder é a revelação de que essa representação está errada, o documentário tenta resolver isso, tentando fechar essa página na história do cinema e da televisão, abrindo uma página de otimismo com as novas representações transgêneros na mídia.

As entrevistas do documentário de Feder também explora momentos da história do cinema em que a presença de um personagem transgênero não era tão óbvia para audiências que não esse tinham o conhecimento.

É ai que entra em debate, mais uma vez, a filmografia de D.W Griffith, racista, diretor de “O Nascimento de Uma Nação” (1915). Em um dos mais antigos longa-metragem do cinema mudo, “Judith of Bethulia” (1914), uma personagem de gênero não-conformista é usada como motivo de piada em uma cena que dá a sugestão de castração. Segundo Feder, o fato de que Griffith fez de uma pessoa genero não-conformista uma piada é negligenciado quando os trabalhos do diretor são discutidos.

O longa de Griffith usa um corte cinematográfico para representar o corte da masculinidade do personagem (o “tornar eunuco”).

A história do cinema tem uma fundação sombria e maniqueísta, em que homens brancos, cisgênero, como Griffith usavam dos métodos de atração que o cinema tinha para construir uma ideia de que todas as minorias eram inferiores, motivo de piada e pessoas a serem temidas.

Uma Mulher Fantástica (2017)

O filme vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro, do diretor chileno Sebastián Lélio, foi adicionado recentemente à biblioteca de filmes do Amazon Prime. O longa conta a história de Marina (interpretada pela deslumbrante Daniela Vega) uma mulher trans que trabalha como garçonete e sonha um dia se tornar uma cantora lírica. Marina possui um relacionamento estável com Orlando (Francisco Reyes Morandé), um homem mais velho; eles vivem juntos no apartamento de Orlando e tem vários planos para o futuro. Na noite do aniversário de Marina, Orlando passa mal e morre. Agora ela tem que lidar com essa grande perda ao mesmo tempo em que ela sofre uma constante pressão dos médicos, policiais e familiares de Orlando.

O cinema tem a capacidade de nos apresentar pontos de vistas alheios ao nosso, e de abrir nossas mentes para novas perspectivas. Essa mediação ocorre com maestria no filme de Lélio e dá grandes esperanças para a representatividade trans no cinema adiante. O espectador é engolido pela narrativa, vive a jornada de Marina, sofre os mesmos preconceitos e sufoca junto com a protagonista.

A luta de Marina é diária, os médicos de Orlando a tratam como uma prostituta, os policiais de Santiago a tratam como suspeita de assassinato e ela sofre perseguição da família do namorado, que a trata como uma pervertida. Todos eles tem uma opinião sobre a identidade de Marina e a única opinião que não levam em consideração é a dela mesma, que precisa lutar constantemente pelo direito de apenas existir. O filme retrata essa perspectiva de forma brilhante e a apresenta de forma escancarada o quanto a transfobia causa mal pra uma pessoa que só quer ter o direito de ser quem é.

A performance de Daniela Vega é impecável, ela transmite muita emoção somente com o olhar, ela transborda carisma e talento e deveria ter sido ao menos indicada ao Oscar de Melhor Atriz.

Talvez a melhor cena do filme é a que vemos Marina andando na rua contra uma forte ventania.

A cena é uma linda metáfora para a intensa luta diária da protagonista, que encontra obstáculos exagerados para as tarefas mais simples, como apenas caminhar na rua. “Uma Mulher Fantástica” é um excelente filme que faz essa mediação entre o público leigo e a vida de uma pessoa trans na sociedade. O longa desperta empatia e é um importante marco para o cinema como um todo, que deve representar com respeito pessoas que sempre viveram às margens, sem respeito, sem empatia e tratadas como chacota ou ameaça aos bons costumes.

O cinema é uma ferramenta midiática que pode ser usada tanto para bem quanto para o mau. A responsabilidade da representação social é importante, mas nem sempre diretores e produtores se preocupam em respeitar aqueles grupos de pessoas que sempre foram desrespeitados na sociedade.

Nós temos que nos levantar e corrigir esses erros do passado, contando mais histórias como em “Uma Mulher Fantástica” (2017) e produzindo mais filmes como “Revelação” (2020) que retratem esse preconceito que passa despercebido por aqueles que não desenvolveram empatia em suas vidas.

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