Análise: Queen & Slim (2019)

Texto originalmente publicado na coluna #Rosebud do site Amarelo24.

O Rosebud desta semana não discutirá apenas sobre um filme clássico. “Queen & Slim” (2019), além de ser um clássico instantâneo do cinema negro, é uma forma de “Arte de Protesto”; e como toda peça artística que reflete o tempo e vivências de seus autores, não posso analisá-la simplesmente como um filme puro sem abrir a janela e refletir sobre o que acontece lá fora no mundo real. Reflexões sociais e políticas são necessárias.

“Queen & Slim” foi dirigido por Melina Matsoukas e escrito pela excelente Lena Waithe (Master of None), ambas mulheres negras que criaram no longa uma trama repleta de nuances e complexidades sobre a questão racial. O plot é simples: “partindo de seu primeiro encontro, um casal mata um policial branco após uma abordagem injusta e ambos entram em uma fuga sem ponto de retorno“. À partir daí, Waithe nos apresenta diversas camadas sociais tendo o casal Queen e Slim como ponto de referência.

O primeiro contato é com o policial. O homem os aborda de forma cruel, os tratando como criminosos. O simples fato de Slim ter reclamado do frio fez com que o policial o apontasse a arma; uma simples discussão com Queen o fez disparar contra ela; ambos estavam desarmados e apresentaram nenhum comportamento agressivo.

Se o casal fosse branco e estivesse dirigindo um carro de luxo a abordagem seria a mesma?

Eu posso responder isso com estatísticas, partindo da perspectiva brasileira:

1. “75,4% das vítimas da letalidade policial no Brasil eram negros.”

2. “Um jovem negro tem 147% a mais de chance de ser morto do que um branco, amarelo ou indígena.”

3. “Mulheres negras representam 61% das vítimas de feminicídio enquanto as brancas representam 38,5%.”

Dados retirados do Anuário da Violência (2019) do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Os dados ficam mais alarmantes quando comparados com a demografia etino-racial brasileira, em que os negros representam menos de 10% da população brasileira e os brancos representam 43,1% (IBGE 2019).

A violência policial sofrida por Queen e Slim é pautada no racismo estrutural da policia. Eles o mataram em legítima defesa.

A reflexão trazida por Waithe é sobre a violência policial, que é um problema tanto na sociedade norte americana quanto no Brasil. Uma reforma sociológica nos departamentos de polícia é extremamente necessária, o terrível assassinato de George Floyd em maio de 2020 é prova disso. O racismo está institucionalizado na própria polícia, os dando “permissão” de atirar primeiro e depois fazer perguntas.

Por que os negros sempre sentem a necessidade de serem excelentes? Por que não podemos simplesmente ser nós mesmos?

Fala de Slim em “Queen & Slim”, reflete o racismo soldado na sociedade e da necessidade de um negro ter que se esforçar muito mais para ser “grande”.

A trama de “viagem” é um gênero por si só, ele nos dá a perspectiva de um personagem perante a um espaço geográfico extenso. O romance “Coração das Trevas” (1902) de Joseph Conrad é um expoente no estilo. No cinema: “Viagem a Itália” (1954) e “Apocalypse Now” (1979) trazem a conhecimento do público perspectivas e realidades diferentes. Especificamente o filme de “fuga” também entra neste mesmo estilo: “O Demônio das Onze Horas” (1965), “Thelma e Louise” (1991) são excelentes exemplos do gênero; assim como a série “The End of the F***ing World” (2017). Uma característica importante desse gênero é a própria realidade moldada ao redor dos personagens, é quase sempre um “passeio social” realista. Se o realismo não convence o filme não funciona; é por isso que “Queen & Slim” é um excelente filme e “Green Book” (2018) é apenas bom.

É neste “passeio” pelos problemas sociais que o teor de manifesto reside. O realismo das relações pessoais que os personagens agregam ao longo do filme é muito parecido com o que acontece na vida real. É aí que mora a importância de ter uma roteirista negra, pois é ela que mais sabe descrever essas sensações, então sua “Arte de Protesto” atinge seu sucesso de mostrar a vivência negra como ela é.

O que realmente trás nuance à história é que nada é branco e preto, são camadas de questões sociais que formam cada ser humano. O filme deixa claro que nem todos os policiais são ruins e nem todos os manifestantes tem boa conduta. Quando, em um protesto, um jovem manifestante mata um policial negro, o filme nos passa uma sensação estranha. É uma lição de que a raiva pode nos levar a fazer coisas erradas. Quando questionada sobre essa cena, a roterista Lena Waithe explica que o rapaz tinha a vontade de ter sua voz ouvida, mas que ele tomou o caminho errado. Tudo fica bem claro, a tensão racial é gerada pelos racistas e pelo racismo estrutural da polícia, o ódio gerado por tudo isso é uma reação ao ódio pregado pelo próprio preconceito; não existe racismo reverso, mas o racismo é sim um mal para todos os lados.

Eu quero um cara para eu me mostrar. Quero que ele me ame tão profundamente que não terei medo de mostrar como posso ser feia. Quero que ele me mostre cicatrizes que eu não sabia que tinha. Mas não quero que ele as faça ir sumir, quero que ele segure minha mão enquanto eu cuido delas. E eu quero que ele aprecie as marcas que elas deixam para trás.

Fala de Queen em “Queen & Slim”, refletindo sobre o amor.

No fim, foi um homem negro que entregou Queen e Slim para a policia, e assim eles foram assassinados por uma legião de policiais momentos antes de poderem escapar pra Cuba. Pessoalmente eu não gosto deste final, mas a explicação de Waithe me fez aceitar ele melhor. O delator representa uma vitima do capitalismo, ele se esquece do bem da comunidade em detrimento de seu próprio sucesso. E não existe fim mais realista do que este, por mais devastador que ele seja, é um fim necessário para mostrar a verdade nua e crua.

“Queen & Slim” é um filme iconográfico, visualmente magnifico, e que nos transporta para a perspectiva de personagens muito reais. A direção de Matsoukas é leve e encontra a sutileza na violência; o longa não evoca o suspense, mas sim a consciência; e é isso que importa para o manifesto que é “Queen & Slim”.

Leituras complementares:

1. Anuário de Violência Brasil 2019

2. Simbolismo em “Queen & Slim” (Inglês)

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